POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL:
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E SISTEMA
NACIONAL DE AVALIAÇÃO (SAEB)
LUCIOLA LICINIO DE C. P. SANTOS *
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as políticas
públicas para as séries iniciais do ensino fundamental. A primeira parte volta-se
para a discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais, buscando abordá-los com
base na discussão sobre as repercussões das reformas curriculares na prática
pedagógica das escolas. A seguir é discutido o significado das estatísticas
educacionais e que tipo de resultado ou de conseqüência elas trazem para a
educação. O foco é o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e
seus limites para a avaliação da educação. A conclusão constitui-se em uma carta
ao ministro da Educação, problematizando-se os desencontros entre as políticas públicas
e a realidade da educação.
Disponível em
<http://www.scielo.br> e <http://www.cedes.unicamp.br>
Palavras-chave: Proposta curricular. Inovação. Parâmetros Curriculares
Nacionais. SAEB. Políticas
educacionais. Avaliação e estatísticas educacionais.
PUBLIC
POLICIES FOR THE BRAZILIAN CURRICULAR PARAMETERS ABSTRACT: This
paper aims at analyzing the state policies for elementary education. Based on
the debate on the repercussions of the curriculum reforms on the pedagogic
practice within schools, the first part comments the “Parâmetros
Curriculares Nacionais” (Brazilian Curriculum Parameters).
The second one discusses the meaning of educational statistics and their consequences
and results on education. The focus is the Brazilian System of Assessment
(SAEB) and its limits to assess education. The conclusion is a letter to the
Minister of Education, emphasizing the inconsistencies between the state
policies and the educational reality. Keywords: Curriculum
proposal. Innovation, Brazilian Curricular Parameters, SAEB, Curriculum and
exclusion, Assessment and Educational Statistics
* Professora da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Introdução
Tem ocupado grande espaço e destaque na
literatura educacional a discussão sobre as políticas públicas, uma vez que em
grande parte dos países do mundo vêm sendo implementadas reformas, tanto no que
diz respeito ao currículo como à organização, gestão e financiamento dos
sistemas de ensino. Tem sido identificada uma grande similaridade entre essas
propostas. Nesse contexto, tem sido produzida uma literatura que analisa essas reformas,
baseadas nas grandes mudanças ocorridas no terreno econômico, social e político
e que incluem processos como a globalização, as transformações no mundo do
trabalho e as mudanças sociais que reconfiguram a realidade em todas as partes
do mundo. Dessa forma, têm sido debatidas as atuais reformas por que passam os
sistemas educacionais, denunciando-se os interesses políticos que as orientam,
a presença de organismos internacionais nesses processos, enfim, tem sido
colocado em foco como essas transformações correspondem às necessidades de
reordenação do sistema educacional, aos interesses econômicos e políticos das
grandes empresas transnacionais e das organizações e dos organismos políticos
que as representam. São apresentadas evidências de como essas reformas se alinham
com a reprodução ampliada do capital, em um processo de desenvolvimento que
privilegia, cada vez mais, os interesses de grandes grupos econômicos em
detrimento de grandes contingentes da população que permanecem marginalizados
dos bens e serviços trazidos pelo desenvolvimento e pela riqueza material, vivendo
em condições de pobreza e de privação no presente e de incerteza e de insegurança
em relação ao futuro. De forma geral, as análises sobre as políticas públicas
para os diferentes níveis e modalidades de ensino, no Brasil, têm mostrado a
coerência interna dessas políticas, sua organicidade na busca de um reordenamento
da educação, evidenciando o caráter centralizador dessas políticas, realizadas
por meio da instituição de parâmetros e diretrizes curriculares, sistema
nacional de avaliação e programa nacional de livro didático. Tem também sido
demonstrado o alinhamento dessas políticas com diretrizes impostas por
organismos internacionais, que financiam e fornecem os critérios para as
mudanças relacionadas à forma e ao conteúdo da organização e do funcionamento dos
sistemas públicos de ensino. Nesse cenário, têm sido debatidas questões como o significado,
que nos documentos oficiais tem assumido o termo eqüidade, a partir da Conferência Mundial Sobre
Educação Para Todos; tem sido problematizada a questão de uma educação voltada
para os interesses e a lógica do mercado e as formas encontradas para conjugar
ampliação do acesso com a redução de custos no setor educacional. Não tem sido
também descuidada, pela literatura crítica, a questão dos diferentes mecanismos
de privatização da educação, que no ensino básico representa claramente a
instalação de dois sistemas de ensino, com objetivos distintos, ou seja, a
escola pública para o povo e o ensino privado para as elites (Lauglo, 1997;
Paiva & Warde, 1994; Oliveira, 1999; Torres, 1996; Coraggio, 1996; Torres,
1995; Dale, 1995; Ball, 1995). Como já foi dito, têm que ser
reconhecidas a importância dessas análises e a pertinência da preocupação dos
educadores com a questão da formação para o trabalho versus formação humana. Esta última pode ser
identificada como a perspectiva que enfatiza a necessidade de a educação
colocar-se no campo da luta por uma sociedade mais justa, ao lado daqueles que
combatem as desigualdades sociais e lutam por mudanças sociais capazes de
reverter a situação de exclusão econômica e social em que vive grande parte da sociedade
brasileira. Contudo, em meio a essa literatura sobre as políticas públicas, orientadas
por um perspectiva crítica de influência marxista e neomarxista, outras análises
referenciadas nos estudos pós-estruturalistas vêm se desenvolvendo. Nessa
vertente merecem destaque os trabalhos de Popkewitz. Diferentemente
dessas análises, que situam as “nossas reformas” como sendo aquelas orientadas
para a mudança social e formação do cidadão crítico, e as “reformas deles”,
como aquelas orientadas por princípios econômicos e pelas leis do mercado, destinadas
à formação do trabalhador, os trabalhos de Popkewitz (1997, 2000, 2001) buscam
romper com esse modelo. Este autor tem discutido o sentido e o significado das
reformas educacionais e seus trabalhos têm sido divulgados no Brasil,
tornando-se algumas de suas idéias referência de muitas análises sobre a
questão das reformas educacionais. As reflexões apresentadas por Popkewitz vão no
sentido de eliminar essas diferenças entre as reformas que poderiam ser
designadas de mais conservadoras ou mais críticas, ou seja, “reformas de esquerda” ou “de
direita”. A tese defendida por esse autor é de que toda essa onda de reformas
se relaciona com novas formas de administração social da liberdade, nas quais
existem apenas diferentes modelos nas formas de se pensar ou de se propor essa liberdade.
Baseando-se em Foucault, esse autor considera a escola como um aparato de
regulação, classificação e monitoramento da infância e dentro dessas relações
de poder é que se configura o discurso da pedagogia. Assim, o discurso das
ciências modernas, no campo educacional, substitui o discurso religioso; é um
novo evangelho social que se difunde e se instala nesse campo. Para Popkewitz
(2000) “os discursos da pedagogia permitiram administrar o sentido interno do
eu das crianças exatamente como os discursos religiosos prévios haviam se
centrado na salvação da alma” (p. 151). Fundamentando-se, ainda, em Foucault,
para quem o discurso está implicado na constituição da realidade
que se propõe a descrever ou analisar, Popkewitz advoga a idéia de que as
ciências educativas “não só reconstruíram a criança, mas também revisaram a
identidade do professor” (ibid.). Neste sentido, as reformas falam em um
professor pesquisador, um profissional reflexivo e uma criança que é
construtora de conhecimentos, que tem disposições flexíveis para resolução de
problemas, que dispõe de uma auto-estima apropriada que lhe permite a participação
adequada nas atividades escolares, enfim, uma criança que tem interesse em
aprender. Para Popkewitz, essas novas propostas pedagógicas buscam apenas
instalar processos de inclusão de crianças e de professores que não se encaixam
nesse perfil. São novos mapas de normalização que se configuram na busca de estimular
no outro, no diferente, as características internas desse novo modelo de
sujeito. Trabalha-se agora com a mudança de qualidades, disposições e
sensibilidades interiores, instalando-se um novo tipo de governo da alma, que
possibilita às pessoas agirem dentro desse novo tipo de liberdade. Uma
liberdade marcada por parâmetros de governabilidade que permitem às crianças a
participação na nova realidade socioeconômica, produzindo um tipo de personalidade
controlada, em função das mudanças sociais e culturais que vêm ocorrendo no
mundo contemporâneo e que exigem um indivíduo autodisciplinado, automotivado e
que funcione como “um participante produtivo nos novos
projetos sociais e coletivos do momento” (p. 153). Dessa forma, os processos de
inclusão são também baseados em idéias que se universalizam e produzem, ao mesmo
tempo, a exclusão daqueles que não se enquadraram nos modelos propostos. Consciente
da vitalidade dessas análises, da sua importância no sentido de desmistificar
as promessas e de colocar em claro os interesses embutidos nesses novos
projetos governamentais em relação à educação, buscar-se-á neste artigo
levantar algumas questões de caráter mais pragmático e mais diretamente
relacionadas com suas repercussões no chão da escola e na trajetória e na vida
dos atores que fazem e vivem o seu cotidiano. Neste sentido, o objetivo deste trabalho
é interrogar esses projetos, a partir de perguntas que partem de outros
lugares, mas que também só puderam ser formuladas com base em trabalhos que, se
não inseridos, especificamente, no campo dos estudos sobre políticas públicas,
defrontam-se com seus efeitos em suas análises e reflexões sobre diferentes
aspectos e dimensões envolvidos nos processos de
escolarização. Dessa maneira, inicialmente, será discutida a questão das inovações
no campo educacional, com ênfase nas mudanças curriculares e nos processos de
organização do sistema de ensino. A seguir, será abordada a questão do sistema
de avaliação nacional do ensino e, por último, serão apresentados os grandes
impasses vivenciados hoje pelos professores das escolas públicas, que em última
instância estão sendo chamados a responder a uma série de demandas postas pelo
governo e pela sociedade em geral. Os Parâmetros Curriculares Nacionais em
questão Quando discutimos as políticas públicas hoje para o ensino fundamental,
o que parece mais surpreendente nessas políticas não é o grau de alienação que elas
produzem, não é o fato de estarem formando sujeitos passivos ou em conformidade
com os critérios de mercado ou com os interesses das elites. O mais
surpreendente é seu baixo impacto na realidade escolar. Seria justo pensar que,
definido um currículo nacional, selecionados os livros didáticos a serem adotados
pelas escolas, treinados professores de forma mais operacional, com vistas ao
desenvolvimento de competências consideradas fundamentais para o exercício da
docência, houvesse uma melhora no desempenho do sistema público do ensino
básico, uma vez que esse desempenho também é avaliado, com base em normas e princípios definidos pelo
próprio sistema. Assim, considera- se neste artigo que merece uma análise mais
aprofundada a própria consistência interna dessas políticas, uma vez que sua compatibilidade
com os objetivos mais amplos de uma educação verdadeiramente democrática tem
sido objeto de estudo e de reflexões em grande parte dos trabalhos acadêmicos
no campo das políticas públicas. Em seu livro Currículo: teoria e história, Ivor Goodson (1995), um dos estudiosos da
história do currículo, destaca a necessidade de se discutir as propostas
curriculares ou o que é chamado de currículo prescrito, advertindo que aquilo
“que está prescrito não é necessariamente o que é aprendido, e o que se planeja
não é necessariamente o que acontece” (p. 78). O autor quer chamar a atenção
para a importância de se entender os fatores e as relações de poder que permitiram
a construção de uma determinada proposta, analisando as causas que
possibilitaram a aceitação de certas idéias em um determinado momento, bem como
a compreensão das razões que levaram certas posições a não terem espaço para se
impor ou para se fazerem ouvir. O campo do currículo tem mostrado que as
propostas pedagógicas são frutos de debates e de disputas de diferentes
naturezas. Por mais coeso que seja o grupo que elabora uma proposta curricular,
haverá sempre conflitos e lutas de interesse na definição de um currículo. São
diferenças de visões sobre determinados aspectos da educação, são disputas em
torno de territórios e de prestígio das diferentes áreas do conhecimento.
Assim, um currículo, mesmo quando elaborado por um grupo que compartilha de
idéias comuns, representa sempre um consenso precário
em torno de algumas idéias. Esse consenso é precário na medida em que, no
processo de negociação para as definições curriculares, há concessões e
intransigências, grupos que cedem ou recuam, grupos que são silenciados, porque
não conseguem adesão a suas propostas e assim por diante. Dessa forma,
dificilmente um currículo apresenta coerência e consistência interna muito
fortes. Primeiro, porque essa coerência já seria difícil de ser alcançada se o
currículo fosse a obra de um só autor, já que as idéias das pessoas apresentam
contradições, expressam conflitos e ambigüidades. Segundo, porque, como obra de
um grupo, menor ou maior, mais intensamente ele evidenciará esses problemas. Quando
consideramos o processo de construção curricular, temos que ter em mente que as
idéias divergentes continuam presentes no campo e, a qualquer momento, grupos
derrotados em um determinado momento podem se rearticular e, em situação
política favorável, impor suas idéias. Um exame cuidadoso das novas propostas
curriculares nos mostrará que grande parte das idéias que elas contêm já vem
sendo discutida no campo do currículo há várias décadas. Caberia então perguntar:
Por que determinadas orientações sobre o currículo escolar ganham tanta força e
prestígio em uma determinada época, tornando-se hegemônicas? Segundo Kliebard
(1992) são determinados fatos sociais, ou eventos políticos, que tornam
plausíveis ou implausíveis certas propostas colocadas em confronto. O autor
quer mostrar que grande parte das idéias sobre currículo está em circulação há várias
décadas e, em um determinado momento histórico, uma determinada proposta ganha
prestígio em função de vários fatores. Por exemplo, se um grupo que
compartilha idéias comuns consegue uma posição de poder, como um cargo público
de prestígio no campo educacional, isso favorecerá a difusão da proposta de
currículo que defende, tornando-a uma proposta plausível. Neste sentido, se a
vitória de uma posição significa, pois, a derrota de outras, cabe lembrar que o
grupo vencido em uma disputa de idéias, geralmente, coloca-se em uma posição
crítica, buscando identificar problemas e desacertos na implementação da
proposta vitoriosa. Isso explica porque determinadas propostas curriculares têm vida bem curta, pois acabam sendo
vencidas pela resistência e pelas críticas daqueles que a elas se opõem.
Conseqüentemente, uma proposta vitoriosa conseguirá se manter enquanto o grupo
que a defender for bem organizado e tiver capacidade de dialogar
democraticamente, aceitando críticas e sugestões novas. Caso contrário, estará
fadado a tornar essa vitória algo bastante transitório. Dessas considerações
trabalhadas no campo do currículo, já se pode tirar uma primeira lição de
natureza política. Como os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados
por um grupo, com a colaboração de intelectuais dos diferentes campos
disciplinares, eles fatalmente irão apresentar inconsistências ou divergências implícitas,
mesmo que a mão hábil de seus redatores tenha procurado atenuá-las ou
suprimi-las. Além disso, as vozes discordantes, que se levantaram contra sua
orientação, ou contra a forma como foram elaborados, estão atuando em outras
esferas, sejam elas estaduais ou municipais, e articulando propostas mais
compatíveis com suas idéias. Dessa forma, a pretensão a um projeto nacional configura-se
como inviável, não porque vivemos em um país de dimensões continentais, mas
porque o próprio processo de elaboração curricular só pode ser pensado em uma
dinâmica constante de construção e reconstrução que se inviabiliza, quando se
cristaliza em propostas como a dos Parâmetros. Dos estudos no campo da cultura
e da produção dos saberes escolares, podem ser tiradas outras lições. A
discussão sobre os Parâmetros tem feito constantemente referência a um artigo
de Michael Apple (1994) intitulado “A política do conhecimento oficial: Faz sentido
a idéia de um currículo nacional?”. É inegável reconhecer que as análises do
referido autor subsidiaram grande parte das publicações sobre essa temática. Em
meio a vários argumentos discutidos pelo autor, é de fundamental
importância a citação que o artigo apresenta de um texto de Richard Johnson
(1991) sobre um aspecto central na discussão dos currículos nacionais. Johnson
mostra que essa idéia de coesão nacional em que se baseiam os currículos nacionais
é completamente equivocada, pois parte do pressuposto de que alunos de
diferentes posições sociais e pertencentes a diferentes grupos sociais recebem
o currículo da mesma maneira. Na mesma direção, partindo do conceito de
instituição como resultado conflitual entre o instituído e o instituinte,
Correia (1991) discute a questão da inovação que busca se universalizar no
sistema de ensino, mas que “paradoxalmente, nem sempre produz mudanças nas
práticas pedagógicas e nas relações sociais estabelecidas entre os agentes
implicados na ação educativa” (p. 22 ). O autor salienta ainda que a mudança
como processo inovador exigiria uma ruptura com práticas instaladas,
tornando-se, portanto, necessário analisar o grau e o poder de decisão dos atores
nela envolvidos. Em processos de mudança, gerados nos e pelos órgãos centrais
do sistema educativo, os professores são tomados como consumidores da mudança e
também como agentes potenciais de resistência. Resulta daí a necessidade de se
criar várias estratégias de persuasão para adesão do professorado ao novo
projeto. Dessa maneira, as estratégias de convencimento na introdução de
reformas são sempre pensadas em função de uma possível resistência dos
docentes. Um exame dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental mostra
que esse apelo persuasivo está presente no documento oficial, sobretudo, no Documento
Introdutório (1997), que busca a adesão do professor por meio de vários
argumentos. Inicialmente, são apresentados dados sobre o desempenho do sistema.
Com base em dados estatísticos sobre taxa de promoção, repetência e
evasão, são enfatizados os problemas das distorções idade/série e o baixo
desempenho dos alunos no SAEB em 1995, em relação às habilidades de leitura e
de matemática. Além disso, a proposta coloca-se como uma busca de superação das
contradições encontradas nas propostas curriculares estaduais e municipais.
Como para a construção dos parâmetros, foi realizado um estudo coordenado pela
Fundação Carlos Chagas, segundo esse documento, a análise das propostas
curriculares de estados e de municípios brasileiros mostrou que “a maioria
delas apresenta um descompasso entre os objetivos enunciados e o que é proposto para alcançá-los, entre os
pressupostos teóricos à definição de conteúdos e aspectos metodológicos” (p.
57). Os avanços pedagógicos da proposta estão enfatizados na seção intitulada “Princípios
e fundamentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais”, em que é afirmado o
caráter inovador dos parâmetros por fundamentar-se em recentes tendências no
campo da educação, merecendo destaque as teorias construtivistas na área de
ensino-aprendizagem. Correia mostra também como as decisões tomadas pelo centro
do sistema são reinterpretadas pelos agentes que se colocam nos diferentes
níveis intermediários, que no caso dos Parâmetros seriam representados pelos
técnicos das secretarias estaduais e municipais de Educação e de seus diversos órgãos
regionais, chegando até as supervisoras ou coordenadoras pedagógicas das
escolas. Também há que se considerar que as escolas não se apresentam como tabulas
rasas, prontas a assimilar o que lhes é apresentado. Dessa maneira, os
Parâmetros, elaborados centralmente, confrontam-se com inovações singulares,
gerando conflitos com as práticas em desenvolvimento nas escolas. De um lado,
os professores, mesmo quando aderem às suas propostas, buscam interpretá-las e
adaptá-las, de acordo com o contexto institucional de onde trabalham, o que faz
com que assumam características bem diversificadas. Por outro lado, para muitos
docentes, as inovações trazem insegurança e inquietação porque se propõem a romper com práticas
já instaladas. Em decorrência desse fato, os professores podem reagir e
resistir às propostas dos Parâmetros, cristalizando práticas tradicionais e revitalizando-as
em uma atitude defensiva contra a mudança. Além disso, reformas curriculares,
na expectativa de inovar e modificar a prática das escolas, podem também criar
barreiras e limites para o surgimento de práticas novas e criativas. Um autor clássico no campo do
currículo, Basil Bernstein (1996), em seus estudos sobre o discurso pedagógico,
focaliza o processo por meio do qual os discursos de diferentes áreas se transformam
em conhecimento escolar, enfatizando os processos de recontextualização
sucessivos por meio dos quais esses discursos vão sendo transformados. Bernstein
chama a atenção para o processo de transformação que esses discursos vão
sofrendo no interior do próprio sistema de ensino e das organizações que mantêm
relações com a escola, como as editoras e todas as empresas ligadas à produção
de material de ensino. Neste sentido, para este autor é importante não apenas
entender os padrões e critérios que definem o discurso pedagógico, como também
os processos de transformações por meio dos quais os discursos ou os
conhecimentos das várias áreas vão sendo recontextualizados e transformados,
até se tornarem conhecimento escolar. Assim, as propostas curriculares, como
parte do processo de deslocamento de um discurso de uma área, constituirse-iam
no primeiro elo de uma cadeia de recontextualizações sucessivas no processo de
produção do conhecimento escolar, na qual interferem desde interesses
editoriais até critérios pedagógicos e regulativos, constituintes do discurso
pedagógico. Segundo este autor, quando um texto é apropriado por agentes
recontextualizadores, ele sofre transformação antes de sua relocação São
mudanças que ocorrem no texto à medida que ele é deslocado e relocado: “Este processo
assegura que o texto não seja mais o mesmo texto: 1. o texto mudou sua posição em relação a outros
textos, práticas e situações; 2. o próprio texto foi modificado por um processo
de seleção, simplificação, condensação e elaboração; 3. o texto foi
reposicionado e refocalizado” (p. 270). O que se quer enfatizar com o trabalho
de Bernstein é que o próprio conhecimento escolar é fruto de um processo
sucessivo de modificações, em uma análise que focaliza a lógica de
funcionamento do dispositivo pedagógico. Considerando-se, além disso, a
produção no campo da formação docente, pode-se verificar como tem sido dada ênfase
aos processos por meio dos quais os professores filtram conhecimentos disciplinares,
pedagógicos e curriculares, refocalizando-os de acordo com sua visão
educacional, seus princípios e valores éticos e suas experiências de vida. Da
mesma forma os estudos no campo da aprendizagem referem-se às experiências
culturais dos alunos, seus conhecimentos prévios, para buscar compreender a forma
como os alunos adquirem determinados conceitos ou idéias. Os estudos no campo
do currículo têm dado grande ênfase ao papel da experiência dos atores
educacionais nos processos de interpretação e negociação e
assimilação dos saberes escolares A partir desse ponto, o que se quer enfatizar
é que as experiências sociais são elementos definidores das práticas escolares
e que uma proposta curricular, como os Parâmetros, será transformada de tal
maneira no seu processo de implementação, que pouca semelhança existirá entre suas
propostas e o trabalho realizado nas escolas. A esta conclusão se chega com
base em uma análise que coloca em foco os processos internos de transformação
dessas propostas, mesmo sem discutir outros fatores sociais implicados em sua
realização e que serão tratados na parte final deste trabalho. O Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Básica Como parte das reformas dos sistemas
de ensino, instalam-se em diferentes países sistemas nacionais de avaliação. No
Brasil, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi criado em
meados da década de 1980 e tem como respaldo legal a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, que coloca como responsabilidade da União a avaliação do
rendimento escolar em nível nacional. Segundo Franco & Bonamino (2001),
objetivo declarado do SAEB “é gerir e organizar informações sobre a qualidade,
a eqüidade e a eficiência da educação nacional”. No
ensino fundamental, por meio de um processo de amostragem, o SAEB vem avaliando
o desempenho escolar dos alunos das redes públicas e privadas matriculados na
4ª e na 8ª séries. Além dos testes, o SAEB é acompanhado de questionários dirigidos
à escola, ao diretor e ao professor. Todos os que trabalham na educação sabem
dos baixos índices de desempenho escolar apresentados pelo SAEB. Nesse contexto
é que será discutida a questão do fracasso escolar evidenciado por esse tipo de
avaliação, como também será discutido o uso de estatísticas no campo
educacional. Popkewitz & Lindblad (2001), em um artigo sobre as
estatísticas educacionais, mostram como estas vêm servindo para definir os problemas
educacionais e de reformas. Seu objetivo não é mostrar como os dados
estatísticos podem ser manipulados, ou dizer se as estatísticas são boas ou
ruins. O problema para o autor é que as estatísticas apresentam dados que são
tomados como espelhos da realidade. No campo educacional são utilizadas para
descrevê-lo, mostrando número de alunos matriculados em cada nível e modalidade
de ensino, taxas de repetência, índices de analfabetismo etc. Para o autor, as
estatísticas buscam expressar aspectos da população que precisam ser
administrados, estabelecendo relações entre tipos de família, condições econômicas,
formação de professores e situação de fracasso escolar. Neste sentido, o
argumento central do autor é de que o agrupamento das pessoas por meio de
agregados estatísticos é uma forma de normalização. As pessoas são distribuídas
em grupos, a partir dos quais são monitoradas e supervisionadas. Dessa forma
“as estatísticas constroem classes de pessoas, inventários ou perfis de pessoas
que podem ser geridas” (p. 126). As estatísticas associam fracasso escolar com
tipos de família, com renda, com acesso a bens culturais. Da mesma maneira,
associam o ensino com o tamanho da classe, formação do docente, material
disponível nas escolas e a educação passa a ser administrada com base nesses
critérios. Cria-se um padrão de normalidade contra o qual se institui uma
imagem do outro: as crianças de risco, os que apresentam
dificuldades de aprendizagem, os imaturos... É a discussão que Foucault faz
sobre as novas formas de disciplinamento e o nascimento das ciências sociais,
no livro Vigiar e punir, que parece inspirar esse artigo de
Popkewitz & Lindblad. São nas novas formas de individualização que as
estatísticas encontram caminho para se desenvolver. É nesse momento histórico
que se cria o indivíduo moderno. Momento em que, segundo Foucault (1987), “passamos
de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos
científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, a medida
o lugar do status, substituindo assim a individualidade do
homem memorável pela do homem calculável (...)”. Se para Popkewitz as
estatísticas produzem a norma e ao fazê-lo criam novas formas de exclusão, para
Bourdieu as novas formas de inclusão propostas pelas reformas educacionais
terminam por incluir excluindo. Bourdieu (1998) mostra que a expansão do ensino
e a permanência na escola de crianças e adolescentes que antes não tinham
acesso à educação criam um novo fenômeno. O acesso dessa população à escola e
até a um diploma não lhe oferece nenhum tipo de garantia. Os investimentos, os
gastos e o sacrifício que alunos das camadas populares fazem para estudar,
muitas vezes, para o autor, resultam em um diploma desvalorizado e que apenas
reforça o estigma social vivenciado por esse segmento social. Esses jovens, apesar
de terem a chance de estudar, não obtêm com a educação um benefício social
correspondente. Assim, a instituição escolar, nas palavras deste autor,
torna-se fonte de uma imensa decepção coletiva: “essa espécie de terra
prometida, semelhante ao horizonte, que recua à medida que se avança em sua
direção” (p. 221). Neste sentido, a democratização da educação implementada
pelas reformas educacionais termina se constituindo em uma “forma superior de
dissimulação”. O autor mostra como na sociedade de consumo, seja de bens materiais
ou de bens simbólicos, há uma tendência em se dar tudo a todo mundo, “mas sob
as espécies fictícias de aparência, do simulacro ou da imitação como se fosse
esse o único meio de reservar para uns a posse real e legítima desses bens exclusivos”.
Esse artigo de Bourdieu termina problematizando também a questão das
estatísticas, pois o crescimento das matrículas, dos anos de permanência dos
alunos nas escolas, não significam ganhos reais do ponto de vista social. É
importante lembrar que esse tipo de estatística busca relacionar índices de
escolarização com desenvolvimento econômico e social. Todavia, há uma coerência
entre esta análise de Bourdieu e os resultados do SAEB, na medida em que este último
evidencia o fracasso dos incluídos. Diferentemente da análise de Bourdieu,
Charlot (2000) chama atenção para o fato de o fracasso escolar, como outros
temas, se tornarem tão populares que acabam por ser aceitos e discutidos na
perspectiva em que são apresentados pela mídia. O autor quer mostrar que o
fracasso escolar se constitui, hoje, em um objeto de pesquisa, sem que os
pesquisadores questionem a própria construção desse objeto. Charlot prossegue
mostrando que, na forma como está sendo tomado o fracasso, este passa a ser um
problema para o qual se procuram soluções, da mesma forma que a medicina
procura remédios para as doenças que acometem as populações. O autor argumenta
que a idéia de fracasso escolar tem atrativos, pois torna-se um elemento
disponível para retratar os problemas que se apresentam na realidade
educacional, nas salas de aulas ou nos estabelecimentos de ensino. Charlot
destaca que a questão do fracasso escolar remete para vários desafios
enfrentados pela educação, para debates: “sobre o aprendizado, obviamente,
também, sobre a eficácia dos docentes, sobre serviço púbico, sobre igualdade
das ‘chances’, sobre recursos que o país deve investir em seu sistema
educativo, sobre a ‘crise’, sobre modos de vida e o trabalho na sociedade de amanhã,
sobre as formas de cidadania etc.” (p. 14). No entanto, para o autor, quando se
fala do fracasso escolar como um objeto a ser discutido e para o qual se
procuram soluções, corre-se o risco de se considerar, por exemplo, que a
melhoria do trabalho docente poderia ser uma resposta para esse problema. O que
Charlot quer salientar é que, se existem alunos que não conseguem acompanhar o
ensino, dominar os conteúdos, que supostamente deveriam adquirir, isso não quer
dizer que exista algo que possa ser designado como fracasso escolar. O que
existem são alunos fracassados, alunos que não se saem bem na escola, alunos
cuja trajetória escolar é cheia de percalços e problemas. Segundo Charlot “o
fracasso escolar não é um monstro escondido no fundo das escolas e que se joga
sobre crianças mais frágeis, um monstro que a pesquisa deveria desemboscar,
domesticar, abater” (p. 16). O autor quer chamar a atenção para a necessidade de
se construir uma sociologia que possibilite entender as relações que as pessoas
estabelecem com o saber, relações que implicam relações com o mundo, com outros
homens e consigo mesmo. Relações que se estabelecem a partir dos significados
que se atribui às coisas. Significados que são partilhados em um universo
simbólico, que se inscreve em uma série de relações que são temporais e
sociais. Assim, para Charlot, analisar a relação com o saber é analisar “uma relação simbólica, ativa e temporal”. É
analisar uma relação social de saber em que sujeitos singulares interagem em um
universo simbólico, que constroem e que os constrói. Concluindo, o que se quer
realçar é que o SAEB revela muito pouco sobre o desempenho dos alunos. Talvez
por meio de pesquisas de cunho etnográfico possa se compreender melhor, por
exemplo, o baixo rendimento de um aluno, filho de um pai diplomado e
desempregado. São em trabalhos como o de Paiva et al. (1997) que se poderá
entender a apatia e o desinteresse dos docentes. É o relato do caso de
professoras do Rio de Janeiro, que precisam vestir o uniforme da escola para
não pagar condução, que talvez explique como esse profissional, que não tem
condições de pagar sua própria condução, vê sua autoridade progressivamente em
declínio, quando, além disso, tem de se submeter à autoridade local do
traficante. Autoridade, hoje, que define o calendário escolar, em algumas regiões,
suspendendo aulas, dizendo o dia em que a escola tem de entrar em recesso, ou a
hora em que as aulas devam terminar. É a partir das relações sociais com o
saber e com o significado a ele atribuído pelos atores sociais que vivem o cotidiano
da escola que se pode avaliar o sistema de ensino e se construir políticas
públicas para a educação.
Conclusão
Exmo. Sr. Ministro:
Meu nome é Luciola Licinio de Castro
Paixão Santos, sou professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal
de Minas Gerais. Tenho dedicado toda minha vida à educação, desde o magistério
das séries iniciais do ensino fundamental até a orientação de dissertações e de
teses de mestrado e doutorado. Ao longo de minha carreira, sou defrontada e
desafiada por problemas relacionados, sobretudo, com o fracasso escolar. Como
formadora de professores que atuarão no ensino fundamental, encontro-me, neste momento
e de maneira mais intensa, diante de problemas que considero de extrema
relevância para apreciação do Ministério da Educação. Entendo que este órgão,
que define políticas, avalia e interfere no sistema de ensino, esteja buscando
sanar problemas como o baixo desempenho dos sistemas de
ensino; aliam-se a isso as dificuldades de implementar reformas que produzam
efeitos concretos no sistema escolar. Sei que, hoje, a grande preocupação dos educadores
e dos homens públicos que trabalham no campo educacional é a garantia de
permanência da criança na escola, uma vez que a ampliação da oferta de vagas já
vem possibilitando o acesso da quase totalidade da população em idade escolar.
Entendo que a questão da permanência tem sido analisada por educadores e políticos,
tomando como referência a qualidade de ensino. Projeta-se uma escola capaz de
formar cidadãos dotados de capacidade de resolver problemas, pensar de modo
criativo, de se comunicar usando diferentes códigos, ou seja, estamos pensando
em um processo de escolarização que permita ao aluno acesso ao conhecimento,
instrumentalizando-o para resolver questões de diferentes naturezas. Tenho certeza de que não há nenhuma
possibilidade de discordância em relação a essas questões por todos aqueles
envolvidos com os processos de escolarização. Passemos agora aos dilemas que
professores universitários, como eu, estão vivendo no presente momento. As
“Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da
Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena”,
aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, Resolução CNE/CP1, de 18 de fevereiro
de 2002, definem em seu parágrafo 3º, artigo 6º, que os projetos pedagógicos
dos cursos de formação de docentes precisam possibilitar a aquisição de
diferentes competências que envolvem conhecimentos relacionados a uma cultura
geral ampla, cultura profissional, conhecimento sobre crianças, jovens e
adultos, conhecimento sobre a dimensão cultural, social, política e econômica
da educação, domínio dos conteúdos que são objeto de ensino, conhecimento pedagógico
e conhecimento advindo da experiência. De um lado, como membro do Colegiado do
Curso de Pedagogia que habilita professores para as séries iniciais do ensino fundamental,
acredito que a implementação dessa legislação pela elaboração de um novo
currículo ou de uma nova proposta político-pedagógica para esse curso é
inteiramente exeqüível. Em uma Faculdade como a nossa, cresce a cada dia a
produção no campo do ensino das diferentes disciplinas. Temos especialistas no
ensino da língua materna, da matemática, da geografia, história, educação
física e artes, sem falar no crescente número de professores que se dedicam a estudar e pesquisar os denominados
problemas de aprendizagem. Por outro lado, como docente e orientadora de
pesquisa e nas minhas atividades de investigação, tenho deparado com a
realidade do universo escolar em que os problemas cotidianos passam muito longe
de questões de ensino e de aprendizagem dos conteúdos curriculares propostos
pelos Parâmetros. Tenho presenciado depoimentos de professores com os quais
convivo (por mim gravados e colocados ao inteiro dispor desse Ministério) que
retratam os reais problemas das escolas. Abaixo apresento alguns extratos
desses relatos. Segundo uma professora da rede pública de ensino, minha orientanda
de mestrado, a escola na qual trabalha fica situada entre duas favelas. No seu
dia-a-dia, essa escola lidava com o problema de alunos drogados, brigas e lutas
entre alunos pertencentes a grupos rivais. O prédio da escola pichado, as
janelas e os mobiliários e equipamentos quebrados evidenciavam o clima de
violência dos alunos, que no processo de depredação do prédio e das instalações
escolares jogavam bombas intimidando professoras, alunos e funcionários da
instituição. A equipe da escola, incluindo direção, supervisão e professores,
tomou a iniciativa de elaborar um projeto para superar esses problemas. Hoje,
através de um trabalho que parte da chamada cultura “hip-hop”, desenvolve-se
uma série de atividades com grafitismo, trabalho e composições de rap e street
dance, que modificou
completamente o cenário da escola. Os alunos participaram de encontros e de concursos musicais e
de grafite e, hoje, o prédio escolar, cuidadosamente decorado com o trabalho de
seus alunos, destaca-se no bairro pela beleza e preservação de seus espaços. O
problema de drogas foi afastado e esses alunos produzem bons trabalhos de
música, dança e artes visuais. É fantástico o trabalho realizado pelas
professoras dessa escola. Essa professora comentou comigo que no dia em que a
turma, que ganhou o concurso de grafitismo, pintava os muros do estacionamento
da escola, a diretora resolveu colocar no alto-falante da escola, como música
de fundo, o hino nacional orquestrado. Esses alunos que sempre se
insubordinavam diante de músicas cívicas, em atitudes de deboche, de ironia e
de insolência, permaneceram calados e respeitosamente pintavam as paredes da
escola, em um clima de profunda harmonia, ao som do hino nacional: sentia-se no
ar orgulho e respeito. Essas são experiências de resgate, de recuperação de um
grupo que estava pegando, na expressão de Drauzio Varella, uma conexão
equivocada na vida, que talvez os levaria para caminhos perigosos e sem
retorno. É inegável o valor desse trabalho. Como não tenho espaço para um
relato mais detalhado de outras experiências, posso informar-lhe que, diante do
alto índice de drogas, de violência, de indisciplina, de gravidez e
prostituição infantil, de doenças sexualmente transmissíveis, de problemas de higiene
corporal, as professoras vêm desenvolvendo projetos sobre “educação
afetivo-sexual”, “higiene e saúde”, “prevenção e combate às drogas”, entre
outros. Trechos de alguns depoimentos, em que as professoras explicam as razões
de trabalharem com essas temáticas, esclarecem a redução do tempo disponível
para o desenvolvimento dos conteúdos, planejados de acordo com as propostas
curriculares prescritas pelos órgãos públicos. A situação de pobreza em que
vivem esses alunos é chocante. Muitas pessoas moram no mesmo cômodo, dividindo
um pequeno espaço comum. O único banheiro de que dispõem é, muitas vezes, o
banheiro público, ou seja, um banheiro que serve a várias casas. Eu estava
passando um dia na rua próxima, vi uma aluna minha de 8, 9 anos enrolada numa
toalha no meio da rua porque ela morava naquela região e provavelmente estava
esperando uma vaga para tomar banho. (...) É uma cena que eu não consigo
esquecer (...) Entrei numa sala de 1ª série então, veio um aluno de 6 anos,
quase 7, ele entrou na sala e pediu para lanchar antes da aula. Ele falou
assim: “– Ô professora, me deixa comer alguma coisa que eu estou com fome, eu
não almocei, eu não comi nada”. Eu falei assim: “pode comer”. Ele tirou uma
garrafinha plástica com um pouquinho de leite e um pão que estava duro. Eu vi o
menino comendo aquilo e passei mal a aula inteira, pois aquilo era o almoço
dele. Um dia uma menina foi surpreendida com maconha na escola, enquanto deixaram
a menina na secretaria para chamar os pais, a menina fugiu, foi para o banheiro
e se cortou toda com uma gilete (...). O professor foi chamar a atenção de um
aluno em relação ao dever de casa, porque sua caligrafia era horrível, apesar
de ser considerado um aluno esforçado. O menino então respondeu ao professor:
“Ô professor, é muito difícil apoiar o caderno numa tampa de panela”. Na época
das férias, eu ia na escola, às vezes, e encontrava meus alunos no meio da rua.
Subia de manhã, às 9 horas, e quando eu descia já eram 2 horas. Na volta
verificava que os alunos estavam no mesmo local, não tinham ido embora para
almoçar. Por isso a merenda da escola faz o maior sucesso, porque eles têm
fome. Nas férias eles não têm para onde ir. A casa deles só tem um cômodo, por
isso ficam brincando, pedindo dinheiro, jogados ao tempo (...). A gente sabe
que a maior parte dos alunos tinha bolsa-escola, mas tanto o pai quanto a mãe
ou o companheiro não têm nenhum tipo de trabalho fixo, são “biscateiros” e o
índice de alcoolismo é bem alto entre eles (...). Muitos alunos andam armados e
a escola está toda pichada, por dentro e por fora das salas de aula, as
carteiras também estão todas quebradas e, em uma porta, está escrito hospício e
em outra, cadeia. Nesse momento, não posso deixar de me lembrar de Betinho, o sociólogo
Herbert de Souza, e de sua campanha “Ação da cidadania contra a fome, a miséria
e pela vida”. Como sociólogo, o Betinho sabia que esse tipo de campanha não
iria resolver o problema da distribuição de renda no país nem a questão social
e econômica, principalmente da população que vive abaixo da linha de miséria. É
nesta mesma situação que se encontram os professores. Fazem campanhas para arrecadar fundos para as escolas,
trabalham no combate e prevenção às drogas, ensinam os meninos a produzirem
materiais caseiros de limpeza... mas sabem que não irão resolver o problema da
criminalidade, do desemprego e da violência urbana. Mas o que fazer? O que fica
dissonante nessa situação é que, além da ausência de políticas sociais que se
encarregassem de lidar com muitos dos problemas que os professores estão
enfrentando, o governo implementa programas de avaliação como o SAEB. É claro
que, via SAEB, continuarão sendo ignoradas tanto as condições de trabalho, como
as iniciativas heróicas de docentes que, na ausência de políticas públicas
sociais, procuram de forma criativa contornar problemas e intervir em situações
alarmantes do ponto de vista social e ético. É obvio também que os resultados
do SAEB serão muito baixos, quando os professores gastam mais tempo em
trabalhos sociais e assistenciais, ficando muito reduzido o espaço para
organização e sistematização de conhecimentos dos conteúdos avaliados pelo
SAEB. Seria interessante indagar se talvez o resultado desse trabalho não
estaria se expressando de forma mais concreta em pesquisas que mostrem redução
dos índices de mortalidade infantil, de aumento do índice de esperança de vida
e outras similares. Como o senhor pode ver, os problemas sociais de diversas
ordens aparecem de forma mais perversa na
escola, porque atingem uma população infantil e juvenil que precocemente sente
o peso da fome, do desamparo e dos sinais de um futuro sem esperanças. Nesse
cenário, o professor é desafiado a educar essa população, tarefa que para ser desempenhada
termina passando por várias outras, como resolver problemas de alimentação e
doenças dos alunos, ajudá-los a superar problemas emocionais, orientá-los em
relação ao comportamento sexual, trabalhar com a prevenção ao crime e às
drogas, entre outros. Fica evidente, nesse quadro, que estão sendo colocadas
responsabilidades e tarefas muito complexas e demasiado número de problemas para
o docente solucionar. Dependendo de seu compromisso, de suas possibilidades e
interesses, determinados aspectos serão priorizados por esses profissionais no
seu trabalho cotidiano. No entanto, todos os problemas acima citados são tão
importantes e exigem respostas tão imediatas que o docente é constantemente
assaltado por dúvidas, incertezas e indecisões, quando não a apatia ou o
desespero. Como conciliar as atividades de assistente social, com as de
psicólogo, de profissional da saúde pública e com o exercício do magistério?
Qual o seu papel? Para o que está preparado para atuar e que tipos de problemas
é capaz de resolver? Estes problemas só poderão ser superados com a conjugação de
várias políticas públicas, voltadas para as necessidades das camadas populares.
Políticas no campo da redistribuição de renda, políticas de emprego, habitação
e saneamento, políticas de saúde e programas sociais de diversas ordens. Só
assim, inserido em um campo maior de reformas, o sistema público poderá se
transformar e apresentar um melhor desempenho. A educação
sozinha não pode assumir a solução dos problemas sociais. O docente só poderá
realmente assumir sua função e seu papel, de acordo com aquilo que é posto
pelas políticas públicas no campo educacional, quando forem criadas condições
para que ele possa dedicar-se à solução dos problemas
educacionais. Quando ele/a puder concentrar suas energias em colocar em ação
uma proposta de currículo afinada com as concepções de uma educação inclusiva. Quando
o Poder Público entender que, para uma mudança no quadro da educação, é
necessário que sejam realizadas reformas econômicas e sociais e sejam
concedidas mais verbas para a educação e mais apoio e incentivo à carreira
docente. Finalmente, como já existem muitas prescrições, recomendações,
advertências e sugestões sobre os deveres a serem assumidos pelos docentes,
considera-se que seria oportuno, uma vez mais, concluir relembrando de seus
direitos: direito a uma remuneração digna, direito a melhores condições de trabalho,
direito de participar em todas as instâncias em que seu trabalho é discutido e
analisado. Finalizando, deixo-lhe algumas indagações: Como implementar os
Parâmetros Curriculares Nacionais se os professores têm de resolver problemas
sociais, restando pouco tempo para conteúdos educacionais previstos naquela
proposta? Qual a finalidade do SAEB se já sabemos que não existe na escola
espaço para o desenvolvimento dos conteúdos acadêmicos nas formas como são
propostos? Como formar um super profissional da educação, capaz de lidar com
problemas tão complexos, se a carreira do magistério é tão pouco atrativa do
ponto de vista salarial e profissional?
Atenciosamente,
Luciola Licinio de Castro Paixão
Santos.
Recebido em julho de 2002 e aprovado em
agosto de 2002.
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